Apresentação Pública
da Fundação Prof. Ernesto Morais

A FUNDAÇÃO PROF. ERNESTO MORAIS teve a sua apresentação pública em 23 de Outubro de 2007, no Centro de Cultura e Congressos da Secção Regional Norte da Ordem dos Médicos, na CASA DO MÉDICO.

A finalidade principal desta apresentação formal foi a de dar a conhecer os seus fins e objectivos.

Presentes neste evento, estiveram individualidades do meio académico, científico e cultural da Região Norte, em cerimónia que contou com os discursos proferidos pelo Presidente da Fundação, Cor. Henrique Morais, pelo Presidente do Conselho Científico da Fundação, Doutor Arnaldo Mendonça, pelo médico neurologista Dr. Maia Gonçalves e pelo Presidente da Secção Regional Norte da OM, Dr. José Pedro Moreira da Silva, por esta ordem.

As intervenções, além de focarem fundamentalmente a personalidade do Prof. Ernesto Morais, contribuíram ainda para, em retrospectiva pormenorizada, relembrar e realçar a sua vida e obra, que a Fundação Prof. Ernesto Morais se propõe perpetuar.

***

Exmo. Senhor Presidente da Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos, Dr. José Pedro Moreira da Silva;
Exmo. Senhor Presidente do Conselho Directivo da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Professor Doutor Agostinho Marques Lopes;
Exma. Senhora Vice Presidente do Conselho Científico do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Professora Doutora Fátima Gartner, em representação do Exmo. Senhor Presidente do Conselho Directivo deste Instituto;
Exmo. Instituidor da FPEM, Dr. José Manuel Morais;
Ilustres Convidados e Amigos;
Minhas Senhoras e Meus Senhores.

Constitui, para mim enorme privilégio presidir à Fundação Professor Ernesto Morais, instituição nascida de um sonho e da perseverança, persistência e empenho de seu Instituidor – meu Irmão mais novo, o José Manuel. Fundação que desejamos venha a perpetuar, a difundir e a promover o pensamento científico e de investigação iniciados pelo Pai, em meados do século passado.

Com o José Manuel partilhei com frequência, a concretização do seu sonho e também o ultrapassar das dificuldades, dos entraves e da morosidade que o reconhecimento formal pela tutela exigiu, acrescida da circunstância de o Laboratório Prof. Ernesto Morais – uma das referências de maior visibilidade legada pelo Pai – se ter, entretanto, constituído em sociedade anónima, englobada num projecto europeu ligado à Medicina.

Situação esta que obrigou à introdução de pequenas alterações nos Estatutos publicados em Diário da República, a 08 de Julho de 1999 e que, por imperativo legal, tiveram de ser novamente sujeitas á aprovação da tutela.

Assim, passaram 8 longos anos de espera por este dia!

Quando o José Manuel me convidou para estas funções, questionei-o sobre a razão desta escolha, uma vez que sendo o quinto de sete irmãos, o que mais cedo saiu de casa para ingressar na Academia Militar e seguir uma carreira que terminou no posto de coronel de cavalaria, e ainda por ser um dos poucos filhos que nunca trabalhou com o Pai, não vislumbrei as afinidades que o levaram a escolher-me para a assunção de tamanha responsabilidade.

A resposta do José Manuel veio pronta e sem hesitação: porque na tua profissão foste educado e preparado a enfrentar os mais variados desafios! Só te peço que os vás vencendo sempre que eles se te apresentarem!

Eis, pois, a razão porque hoje me encontro aqui, perante Vossas Excelências, honrado pelo convite e determinado a levar por diante e a atingir as finalidades da FPEM. Todavia, tal só é, e será possível, porque tenho a meu lado, em todos os seus órgãos, um conjunto de personalidades dispostas a trabalhar e a colaborar, de forma voluntária, na prossecução daqueles objectivos.

Permitam-me que deste local, publicamente, em meu nome e no do Instituidor manifeste o nosso reconhecimento e os nossos agradecimentos a todos quantos integram os diferentes órgãos da FPEM, pelo empenho, dedicação, disponibilidade e abnegação com que aceitaram as respectivas nomeações.

Estabelecem os Estatutos que a “FPEM tem por fim realizar, promover, apoiar e patrocinar acções de carácter científico e educativo, bem como incentivar e colaborar em eventos no campo do ensino, da investigação e de actualização das ciências médicas”.

Entende-se facilmente, que tal abrangência só poderá ser concretizada quando as capacidades financeiras estiverem plenamente asseguradas e a sua sustentabilidade for real!

Assim, e para se dar cumprimento ao estipulado no Art. 5.º dos Estatutos desta Fundação,queremos, em face da realidade imediata ao nosso alcance,promover as acções que passo a identificar:

1.º – Criar e manter prémios pecuniários a atribuir aos alunos com a melhor classificação nas cadeiras de Imunologia e/ou Genética da FMUP e do ICBAS.

Para esse efeito, em cada ano lectivo, os respectivos Presidentes dos Conselhos Directivos notificam a FPEM dos alunos a quem foi reconhecido aquele mérito. Posteriormente, e em cerimónia de comemoração dos seus dias festivos, procederão à entrega dos respectivos prémios.

2.º – Criar e manter apoios monetários a projectos de investigação que os alunos das cadeiras atrás referidas apresentem e submetam à analise do Conselho Científico (CC) da FPEM.

Este CC, é constituído por sete elementos: seis Professores Catedráticos, sendo dois da escolha da Fundação – o Prof. Doutor Arnaldo Mendonça e o Prof. Doutor Manuel Sobrinho Simões; dois, por indicação da FMUP – Prof.ª Doutora Deolinda Lima e o Prof. Doutor Alberto de Barros, e dois, por indicação do ICBAS – o Prof. Doutor Carlos Lopes e o Prof. Doutor António Jorge de Sequeiros. O sétimo elemento, o Administrador Dr. Armando Mendes é o elemento de ligação entre o CA e o CC da FPEM.

Os membros que acabo de referir, que são conceituadas personalidades do meio científico e da investigação profundamente empenhados nas suas tarefas diárias, encontraram ainda disponibilidade para abraçar de alma e coração este projecto e, deste modo, dar-lhe a projecção e a credibilidade que a FPEM muito penhoradamente lhes agradece. Como é natural, esperamos desenvolver, sob as suas reconhecidas competências e orientações, as áreas que melhor se adeqúem ao objecto inscrito nos Estatutos.

É pois com muita estima e consideração que dirijo um bem-haja a todas V. Exas.

Em fase posterior, a FPEM propõe-se ainda criar prémios e subsídios para trabalhos de investigação científica nas áreas de Imunologia, Genética e Hematologia, quando patrocinados, assim como apoiar o programa de doação de medula óssea.

Este é, indubitavelmente, um objectivo ambicioso que se pretende projectado num futuro mais ou menos próximo, mas que está claramente dependente da capacidade em se encontrarem apoios financeiros adequados à sustentabilidade deste objectivo.

Antes de terminar, gostava de vos contar um pequeno episódio que me marcou profundamente, pela reafirmação do conjunto de referências e valores transmitidos pelo Pai e que, desde sempre, pautaram a minha formação e educação.

25 de Maio de 1970

Na Guiné, em Fulacunda, cumpria uma comissão de serviço, no comando de uma companhia de cavalaria.

Recebi a notícia da vinda de meus Pais a Bissau, com os quais iria passar uns dias de descanso. Contudo, quando me preparava para sair de Fulacunda, recebi indicação de que, por razões operacionais, tal não me era permitido. Procurei, então, através de pessoa amiga, que á chegada de meus Pais ao aeroporto, os colocasse ao corrente da situação, pelo que lhes pedia que regressassem ao continente.

Contristado com o sucedido, aguardei informação dessa pessoa, dando-me conta da reacção de meus Pais.

Embrenhado nestes pensamentos, no meu gabinete dou conta da aproximação de um avião. Dirijo-me para a pista, e qual não é o meu espanto quando vejo meus Pais já em terra, e o avião a descolar...

Corri a recebê-los e das primeiras palavras que meu Pai me disse, foi que tinha de ir pedir autorização ao administrador de posto, para permanecer em Fulacunda, por uns dias.

O administrador, de imediato autorizou, mas disse-me que, por não ter condições para os alojar, mos entregava.

Durante o resto da tarde, tiveram oportunidade de observar a vida numa unidade instalada no teatro de operações e, ao final da tarde foram para as instalações que lhes iriam servir de alojamento, cedidas pelos meus alferes, por serem as únicas onde existia um pequeno abrigo contra granadas de morteiro. Com a chegada do anoitecer, recebo uma informação do comando-chefe, dando-me conta da forte possibilidade de Fulacunda ser atacada, nessa noite, por mísseis terra-terra.

Fui ter com os meus Pais, escondendo as minhas preocupações, e disse-lhes que, se por acaso ouvissem tiros, corressem para o abrigo e aí permanecessem. Meu Pai, nesta altura apenas me disse: Bom, a tua Mãe irá para o abrigo, mas tu arranja-me uma G3 ou outra arma que entendas, para ir combater a teu lado!

Felizmente, a noite foi tranquila e no dia seguinte voamos para Bissau, onde passamos 4 dias. Foi nesta altura que me colocaram ao corrente da razão que os levara à Guiné – dar-me a saber das consequências que a gestose grave de minha mulher poderia provocar. Sem que nada o fizesse prever, a 27 de Maio prematuramente nasceu a minha filha, que morreu dois dias depois.

O apoio e o carinho de que me rodearam nessa altura difícil permanecem indeléveis na minha memória!

Chegado é, então, o momento de dar a palavra aos oradores que se seguem e que, por certo, de uma forma mais racional e, talvez, menos emotivamente condicionados, nos irão apresentar facetas do Mestre e Investigador, a par dos dados biográficos mais significativos do Professor Ernesto Morais.

A finalizar, em meu nome, no do Instituidor e no de todos os membros que constituem os órgãos desta Fundação agradeço, profundamente honrado, a Vossa disponibilidade em partilharem connosco tão significativos momentos.

Coronel Henrique Morais, Presidente da FPEM.

Porto, Ordem dos Médicos, 23 de Outubro de 2007

***

Exmo. Senhor Presidente da Fundação Professor Ernesto Morais

Exmos. Colegas

Minhas Senhoras e Meus Senhores

A criação desta Fundação constitui o reconhecimento e a gratidão de muitos ao Professor Ernesto Morais e ao seu valor como Homem e como Mestre. É também a oportunidade, embora tardia, para a homenagem que nunca lhe foi prestada.

Agradeço ao Presidente da Fundação e ao Conselho de Administração a honra que me concederam para integrar o Conselho Científico, a que presido pela votação de todos os outros membros, e aproveito a oportunidade para publicamente testemunhar algumas facetas da vida do Professor Ernesto Morais que justificam a minha admiração por ele.

Todo este tempo que dediquei também à medicina clínica (na opinião dos que me formaram e no meu próprio conceito a Hematologia Clínica deve abranger preparação clínica e laboratorial) foi possível aperceber-me sempre de um facto novo ou diferente em quase todos os casos que estudei, e de aprender também com muitos dos colegas com quem contactei.

Não poderei, porém, esquecer os professores que na Faculdade de Medicina do Porto ou de outro país europeu contribuíram para a minha formação, influenciando de maneira decisiva a escolha da especialidade que procurei e procuro exercer com ética, dignidade e rigor, reconhecendo embora que, no momento actual, se torna cada vez mais difícil consegui-lo. Entre eles quero destacar o Professor Ernesto Morais e, mais tarde, em Paris, o Professor Jean Bernard. Foram eles realmente os meus verdadeiros Mestres.

Tive o privilégio de ter o Professor Ernesto Morais, na disciplina de Patologia Geral, que hoje, por razões que me são estranhas já não faz parte do curriculum da Faculdade.

Impressionou-me a sua inteligência, o seu valor pedagógico e a exigência na preparação de todos os temas. Mas sobretudo o sentido da responsabilidade. Fui seu assistente nessa cadeira e tive a meu cargo algumas aulas teóricas e muitas aulaspráticas de hematologia laboratorial. O contacto frequente que mantive com ele – pois informava- o sempre do tema e do plano de cada aula – criou em mim uma atracção especial resultante do rigor exigido nos seus métodos de trabalho.

Considero o Professor Ernesto Morais uma figura notável que incentivou o ensino da Hematologia em Portugal e, sobretudo, no Porto. Mais tarde, esse ensino alargou-se na minha Faculdade por iniciativa do Professor Falcão de Freitas com uma disciplina de Hematologia Clínica integrada, na cadeira de Patologia Médica. Tive a honra de, juntamente com a Dra. Manuela Mendes Ribeiro inicialmente, ser responsável depois, durante alguns anos, pelo seu ensino.

Já jubilado, o Professor Ernesto Morais gostava de se manter ao corrente do programa dessas aulas e eu esperava dele, reconhecido, uma palavra de crítica, de ajuda e de incentivo. Não deixei ainda de contar com a sua experiência, que foi valiosa, em alguns aspectos do trabalho para o meu doutoramento.

Mais não pôde o Professor Ernesto Morais porque a doença, que tão bem ele conhecia, tinha-o atingido.

Contactei de muito perto com a sua actividade em Angola, onde a convite do governo da República Portuguesa orientou a instalação do futuro Hospital Universitário de Luanda. Decorria o ano de 1966. Naquela antiga colónia o Professor Ernesto Morais tinha-me encarregado e responsabilizado pelo ensino da Patologia Geral no terceiro ano dos então Estudos Gerais Universitários de Angola, após ter terminado obrigatória (1963-1965) aí a minha comissão militar. Durante mais de um mês, além dos seus compromissos com o Hospital Universitário, orientou a minha actividade pedagógica e laboratorial, modificando algumas técnicas, sugerindo outras, por exemplo, no estudo das hemoglobinopatias, tão frequentes em África e essencialmente discutindo o programa de aulas práticas que eram na sua maioria dedicados às técnicas laboratoriais de hematologia.

Assim se foi criando em mim a atracção pela especialidade que exerço por opção e por gosto. Os seus vastos conhecimentos e a sua inteligência foram a ajuda que me deu – na altura um principiante na disciplina – ao mostrar- me como poderia progredir com os métodos então disponíveis no estudo da patologia do sangue e dos órgãos hematopoiéticos. Não melhor conhecimento da fisiopatologia, no diagnóstico e no tratamento.

Embora fosse mestre no domínio da técnica laboratorial não se cansava de lembrar um princípio básico para a medicina clínica, que apesar das mudanças actualmente em curso, mas de resultados duvidosos, manter-se-á – uma boa história do doente e o exame físico são e serão sempre a base de toda a medicina.

O Professor Ernesto Morais, após terminado o seu curso tinha exercido durante algum tempo clínica médica.

Mesmo com muito trabalho no futuro Hospital Universitário de Luanda (tão importante também para o protagonismo político que desempenhou na época) havia sempre ocasião, para ao fim da tarde, nos juntarmos os três (minha tia tinha-o acompanhado) e falarmos não apenas do trabalho desse dia mas de muitas outras coisas.

E entre as muitas outras coisas… é interessante recordar. Num belo fim de tarde, no extremo da Ilha de Luanda, os três sentados no carro, a ouvir no rádio, a recuperação de Portugal, contra a Coreia do Sul no Campeonato do Mundo de futebol em Inglaterra. Ficámos todos satisfeitos com os 4 golos do Eusébio, que nos deram a vitória. E o Professor Ernesto Morais, nada familiarizado com os desportos, não escondia sua boa disposição.

Acompanhei o Professor Ernesto Morais quando estava a ser discutido o futuro Serviço de Imunohemoterapia do Hospital Universitário para o qual tínhamos apresentado, alguns meses antes, o plano com material e bases de trabalho. Ficamos em local de fraca audição. Fiz-lhe notar que, onde estávamos, ouviríamos mal. Sabes, disse-me ele, em certas ocasiões o melhor é não ouvir e até nem ver. Que grande esforço fiz para não me rir.

Era assim o Professor Ernesto Morais que recordo muitas vezes, prestando-lhe hoje a minha homenagem mas, sobretudo, o meu agradecimento.

Doutor Arnaldo Mendonça, Hematologista.

Porto, Ordem dos Médicos, 23 de Outubro de 2007

***

Com a maior das sinceridades começo por dizer que nunca, na minha já não breve existência, imaginei poder vir a ser obsequiado com tão honroso convite como este que me foi formulado pelo Dr. José Manuel Morais (JMM) para estar aqui hoje neste dia festivo da anunciação da Fundação Prof. Ernesto Morais (FPEM), a proferir estas palavras.

Obviamente, o meu 1.º gesto não pode ser outro que não o do meu sincero e profundo agradecimento ao Dr. JMM.

E logo de seguida, agradecer também a atenção e o benefício da dúvida que a ilustre assembleia aqui presente vai, a partir de agora, conceder-me.

Gostaria de não vos desapontar, mas receio não ter talento suficiente para o evitar.

Nunca poderia não aceitar tão preciosa, direi melhor, providencial, oportunidade de concluir de um modo tão imprevisível mas ao mesmo tempo tão simples, tão original e tão agradável, o trabalho que desde há alguns anos a esta parte ando a elaborar nas páginas da Revista Norte Médico, sobre a História Médica Portuense.

Como nos seus modos simples o nosso povo diz: veio mesmo a calhar.

Sim, para mim, este amabilíssimo convite do Dr. JMM aceitei-o procurando encará-lo como uma verdadeira prenda.

Não porque pense que a merecesse, nem que não medisse a responsabilidade da incumbência… Mas entre a recusa ao convite, e o receio de não vir a corresponder a tão expressa e calorosa generosidade do Dr. JMM, e aceitei o convite como um desafio a um ex-aluno, e ex-colega, médico, de um Professor, que desde hà mais de 40 anos, sempre tive em elevada conta e consideração.

Foi-me oferecida, de graça, tão honrosa oportunidade...

Não tinha o direito de dizer não.

Só peço que ninguém espere ouvir uma biografia completa, exaustiva de Ernesto Morais (EM), e que também aceitem que o que vou dizer leve a minha marca pessoal, a minha chancela e o meu timbre, ainda que o que vou dizer, e como vou dizer, possa não estar conforme aos cânones superiormente recomendados para ocasiões como esta.

Encoraja-me também pensar, e sentir, que não sou um elemento totalmente estranho, nesta história. Nos meus inalienáveis atributos de ex-aluno, ex-colega (toda a minha vida profissional decorreu no Hospital de São João (HSJ) sendo próximo, portanto, do Prof. Ernesto Morais (PEM) e do curioso historiador do Conselho Regional (CR) do Norte da Ordem dos Médicos, em que ultimamente me tenho transformado, assistir-me-á, o direito de ser considerado como um Testemunho vivo, contemporâneo e minimamente credenciado.

Para além do tempo de que dispus, e disponho, que foi, e é, hoje, muito breve, seguramente não tenho o cavalete, nem a paleta, nem pincéis, para elaborar um retrato de corpo inteiro do PEM. Não disponho (suponho mesmo que ninguém dispõe) das alfaias indispensáveis para construir o edifício inteiro e muito menos com todos os interiores da personalidade do PEM… como aliás da personalidade de qualquer pessoa.

Mas com aquelas modestas credenciais, e mais a ajuda dos testemunhos de colegas amigos que com ele conviveram e trabalharam (aos quais quero aqui agradecer não só a simpatia com que me receberam como as informações preciosas que me forneceram), conseguirei desenhar pelo menos alguns aposentos de que o edifício da personalidade e do carácter do mesmo PEM é composto.

Como já referi, desde há alguns anos a esta parte que me tenho dedicado a estudar a história da Medicina Portuense, (repito Portuense) escrevendo artigos na revista Norte Médico do CR do Norte da OM.

Tem sido um trabalho do meu inteiro agrado, que tenho feito com a caneta, tal sonda canulada, encravada no septo inter-ventricular, isto é, com o coração a comandar a escrita.

Sou conduzido a pensar que aqueles meus artigos que têm vindo publicados na revista NM, terão algum merecimento pois terão sido eles que induziram no Dr. JMM a ilusão de que eu seria capaz de escrever algo de minimamente válido para ser apresentado aqui hoje nesta oportunidade.

Feliz ficarei se tal vier a corresponder à realidade.

Só que o mérito, Dr. JMM, não residiu, nem reside, em mim, mas sim no que encontrei nos escritos que tive que ler para poder elaborar aqueles meus modestos trabalhos. Não inventei, nem invento, nada. Não passo de um modesto “escafandrista”que procura recuperar para a superfície e para a visibilidade, alguns dos patrimónios humanos, médicos, Nortenhos, que a incúria, o desleixo, a negligência, com muita ignorância de permeio, mas, acima de tudo, a ingratidão humana, relegaram para os fundos das estantes, das gavetas e dos armários.

Desta maneira, o primeiro a beneficiar das minhas investigações e descobertas tenho sido eu próprio.

Pois bem: nem eu próprio, quando iniciei o referido trabalho, sabia que o PEM tinha alguma vez sido Presidente do CR do Porto da OM.

Foi para mim uma grande surpresa, e desde logo, mais uma lição exemplar recebida do PEM, pois nas minhas construções mentais, eu “imaginava”, como ponto assente, que um Prof. da Faculdade nunca se imiscuiria nos assuntos da OM. Enganei-me, mas não andava muito longe da realidade, pois, como depois descobri, só mais um Prof., o Prof. José Garrett, e bastante tarde se “abalançou” a correr os mesmos riscos do sufrágio.

Sublinho, para não ser mal interpretado, que me refiro ao cargo da Presidência do CR, isto é, a encabeçar, a dar publicamente o peito e a cara numa lista concorrente, porque, na verdade, nos restantes lugares secundários dos diferentes Órgãos dirigentes da OM, sempre houve Prof. da FMUP a integrarem as listas.

Para um melhor enquadramento de tudo quanto estou a discorrer, convirá recordar que a OM só existe desde Dezembro de 1938.

E portanto quando EM se licenciou, em 1928, a OM não existia.

Os médicos de então viviam associados em múltiplas agremiações que existiam espalhadas por todo o País, independentes umas das outras.

No Porto vigorava a Associação Médica Lusitana (AML) em cujos registos, por um feliz acaso, consegui encontrá- lo inscrito naquele mesmo ano de 1928.

Cronologicamente, EM foi o 5.º Presidente do CR do Porto da OM. Os seus antecessores foram: o 1.º Américo Pires de Lima, o 2.º Carlos Alberto da Rocha, o 3.º António Baptista Alves de Sousa e o 4.º Adolfo Pinto Leite (Pai).

Foi curiosa a passagem do mandato de Pinto Leite para EM e vale a pena resumi-la porque como há muitas coisas encadeadas umas nas outras, só se percebe se as conhecermos.

Desde o princípio, a duração de cada mandato, para os CR era de 2 anos, e segundo essa regra, o seu antecessor, Adolfo Pinto Leite, deveria terminar o seu mandato em Dez de 1945. Pois bem: chegados aqui, só gostaria de lembrar quão importante e activo e rico de acontecimentos, internacionais como nacionais, foi essa segunda metade do histórico ano de 1945, o ano do fim da II GG (em 06 de Agosto, foi lançada a 1.ª bomba atómica sobre Hiroshima) e também ano de eleições legislativas nacionais em Portugal (18Nov1945) e também o da constituição do Movimento de Unidade Democrática (MUD) em 08Out1945, que menciono, porque dela faziam parte muitos médicos.

Entretanto poucos dias antes do fim desse ano, mesmo em cima da hora, surgiu uma lei estratégica (D. Lei n.º 35404 de 28 de Dezembro de 1945) que argumentava assim:

“Relativamente aos organismos corporativos a experiência demonstrara a necessidade de assegurar uma permanência de orientação que só pode resultar da continuidade no exercício dos cargos sociais”, pelo que prorrogava os mandatos, os quais, daquela data em diante, passavam a ser de 3 anos, e mais decretava também que “não haveria eleições em Janeiro de 1946”, e por esse mecanismo legislativo Adolfo Pinto Leite viu-se “obrigado” a continuar durante o ano de 1946 e as novas eleições seriam em Janeiro de 1947.

Tudo isto, acrescente-se, debaixo de um ambiente de intensa contestação por parte dos grupos da oposição médica.

O mandato de EM durou, portanto, desde 1947 até 1949, e a sua presidência, para além de original (foi o primeiro triénio de raiz) ficou plena de muitas outras “primeiras vezes”em múltiplos aspectos da vida da Instituição e até do País:

– EM foi o 1.º Presidente do CR nascido já no século XX (nasceu em Abril de 1905) o que equivale a dizer que foi também o 1.º Presidente licenciado pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), em 1928, enquanto todos os seus antecessores, nascidos no século anterior (XIX) tinham sido licenciados pela então chamada Escola Médico-Cirúrgica (EMC) antes de 1910, portanto.

– EM foi o até então mais novo Presidente do CR do Porto: quando tomou posse em Março de 1947, contava 41 anos de idade: só no mês seguinte completaria os 42. Os seus antecessores, quando tomaram a mesma posse, tinham: 53-64-57 e 63 anos, respectivamente.

Era, na verdade, uma diferença de idades muito considerável.

Naqueles tempos terá representado a chegada da Juventude, de sangue novo nas chefias do CR, uma iniciativa muito próximo de grande atrevimento, contra os costumes vigentes.

– EM foi o 1.º Presidente eleito depois do fim da II GG. Como já referi, o seu antecessor, AP Leite, iniciara o seu mandato em 1944, em plena guerra e só terminou em Dezembro de 1946.

Depois das inimagináveis, indescritíveis e intermináveis experiências de uma guerra a que só a bomba atómica conseguiu pôr termo, começava, então, uma verdadeira nova era, um renascer e um reconstruir, em ambiente de paz, cheio de esperança para toda a Humanidade.

Toda essa carga de renovação e esperança focalizadas no CR foi EM o 1.º a recebê-la, a senti-la e a transmiti-la.

– Como já disse, e expliquei, EM foi o 1.º Prof. da FMUP a apresentar-se a sufrágio para a presidência do CR do Porto. O primeiro dos dois únicos, porque como já disse, só J. Garrett, mais tarde, teve a mesma coragem.

– Foi na vigência de EM que foi decretada a nível nacional a instituição da Federação das Caixas de Previdência com os Serviços Médico-Sociais, desse modo instalando a cizânia (para não dizer o pânico e o ódio de muitos) entre a classe médica, o que desencadeou as maiores agitações e protestos dentro do CR, e que serviu para por à prova as excelentes qualidades de líder do Prof. EM.

– Durante os três anos do seu mandato, EM dedicou uma atenção e um carinho muito especiais à modesta Biblioteca que existia no CR. Carinho mas também coragem, porque era preciso ter coragem para, do parco “orçamento” disponível, reservar verbas consideráveis para o enriquecimento da Biblioteca.

Mais: determinou que o horário de funcionamento da mesma Biblioteca se alargasse a períodos nocturnos para oferecer acesso a colegas que nos horários de rotina habitual não pudessem frequentá-la. Ele sabia quão importante era para um clínico a informação médica permanentemente actualizada.

– Por fim a coroa de glória de EM: uma vez que a já desde há anos apelidada de “Obra Portuguesa de Aperfeiçoamento Médico-Sanitário” permanecesse “na gaveta” do Governo (a quem obrigatoriamente assistia a res- 6\15 ponsabilidade de garantir o âmbito nacional, a regularidade, a continuidade e naturalmente todos os custos de uma tal “Obra”, o CR do Porto da OM sob a presidência de EM propôs-se organizar o que apelidou de “1.º Curso de Repetição e Actualização de Conhecimentos Médicos” especialmente vocacionado para os colegas “da província”. São palavras suas, bem elucidativas da sua maneira de pensar e de actuar, que apareceram no Boletim da OM: “Tudo quanto se faça no sentido de ajudar os que principiam, ou de acertar o passo dos mais velhos é pouco. Todas as tentativas devem ser estimuladas, amparadas e melhoradas”.

Tudo isto muito antes (mais de 10 anos antes) do chamado Movimento dos Novos e dos Relatórios das Carreiras Médicas, e da posterior instituição das mesmas.

Foram os primeiros 3 cursos inaugurais, no seu mandato. Um em cada ano: o primeiro logo no seu primeiro ano de 1947, o segundo em 1948 e o terceiro em 1949. Foram 3 êxitos estrondosos, para o que EM teve que conseguir a anuência dos Ministérios, da Faculdade, da Reitoria e de todos os médicos e directores dos diferentes Serviços e Unidades onde os Cursos decorreram. E todos sabemos quão difícil é alcançar unanimidade dos médicos. E EM conseguiu-a com muita coragem, determinação e labor diplomático.

É uma constante esta capacidade em EM de conseguir o diálogo e a convergência dos dirigentes, ou seja, a sua capacidade para liderar.

Por tudo isto o Prof. Albano Ramos escreveu, anos mais tarde, a propósito destes Cursos de Aperfeiçoamento cujos êxitos sucessivos continuaram durante dezenas de anos seguintes: “E não se pode esquecer aquele que se não cavou os primeiros alicerces, talhou e fixou os cunhais desta obra que já tem grandeza que não permite demolição. Rendamos pois ao Prof. Ernesto Morais as homenagens que lhe são devidas”.

Dentro das muitas diligências que tive que fazer para a reconstituição do que acontecera naqueles recuados tempos, tive a sorte de um dia poder conversar, amenamente, com o Dr. J M Rodrigues Carvalho, médico de Viana do Castelo, fundador do CADEM, que havia trabalhado muito de perto com EM no CR. Mesmo sem qualquer interrogação minha, o Dr. JMRC confidenciou-me: “O Prof. EM com quem convivi e trabalhei durante os 3 anos do mandato, impressionou-me profundamente e marcou para sempre a minha maneira de ser e estar. Passei a nutrir por ele uma admiração muito grande. Estudava sempre muito bem as agendas das reuniões do CR. Era um perfeito líder. O Dr. Manuel Cerqueira Gomes, o único médico Nortenho que foi Bastonário da OM durante o mesmo período de mandato (e também nos outros 2 que se seguiram) era nas informações e conselhos dados pelo Prof. EM em que se apoiava, e seguia, nas suas intervenções em Lisboa”.

 

EM se fosse vivo teria hoje 102 a caminho dos 103 anos de idade. Nasceu em Valpaços em Abril de 1905. Deixou o convívio dos vivos em Janeiro de 1986,iria completar 81 anos de idade.

Nasceu, pois, em Monarquia, em 1905; ainda não tinha iniciado a Escola Primária quando, em Outubro de 1910, foi implantada a República; enquanto decorria a I GG (1914-1918) frequentava o Liceu em Bragança; em 1919, terminada a guerra, com 14 anos de idade, pela segunda vez, mudou de residência, vindo, então, para a cidade do Porto, onde completou o Curso Liceal e de imediato se inscreveu na Faculdade de Medicina onde alcançou a licenciatura em Medicina, no ano de 1928.

 

Há pessoas (a esmagadora maioria) que passam por esta Vida sem deixarem qualquer rasto ou marca das suas iniciativas.

Algumas deixaram alguns sinais significativos, visíveis durante algum tempo, mas que, depressa, a lei da morte os apagou da memória colectiva.

Outras, deixaram marcas profundas, bem visíveis e duradoiras da sua passagem por estes lugares terrestres. Destes últimos, alguns poucos, como foi o caso do Prof. EM, pelas razões mais dignas, mais nobres e mais nobilitantes, reconhecidamente, comprovadamente.

Outros há que, entendendo que seria injusto que o tempo viesse apagar a memória de alguns que em vida foram valerosos, diligenciam para que a lei da morte não vença nem destrua a lei da gratidão. É o que nos faz estar hoje aqui reunidos e concentrados neste digno e mui louvável propósito de prestar tributo e homenagem ao Prof. EM, perpetuando o seu nome, a sua figura humana e a sua obra.

Muitos foram de origem/extracção humilde. Mas nem todos continuaram na mesma linha original. Alguns, algures, nos seus itinerários, toldados por novas e falsas auroras, e falsos oragos, mudaram e deixaram de ser humildes e, ainda, uns poucos, até chegaram ao extremo maldito, nos antípodas, de esquecerem ou até renegarem os seus ascendentes, como todos nós acabamos por ouvir falar.

EM, filho de uma família numerosa e humilde, ao longo de toda a sua vitoriosa carreira médica e de Prof. Universitário, deu provas de nunca esquecer nem renegar as suas origens, nem os seus familiares.

A veneração da Família constituiu para ele um dos lados do seu Triângulo Sagrado dentro do qual durante toda a sua vida se movimentou, se limitou e se esgotou. Tal como escreveu A. Tavares (Filho): “A Família era para ele o refúgio onde retemperava o ânimo, na tranquilidade implícita do seu Lar Transmontano”. Os outros 2 lados desse seu Triângulo Sagrado foram a Faculdade de Medicina do Porto e o seu Laboratório particular.

De casa para a Faculdade, desta para o Laboratório e de novo para casa. Escravo do trabalho. Veneração pela Família. Paixão pela Faculdade, foram expressões, todas, utilizadas pelos testemunhos de quem o conheceu bem.

No Laboratório, onde era exigente da mais alta qualidade e onde não regateava fosse o que fosse necessário para estar na vanguarda da técnica laboratorial; onde fazia questão de nunca deixar nada para o dia seguinte, nem que fosse preciso trabalhar para além dos horários habituais, ou dias feriados. (“deixa que comer, não deixes que fazer”, era uma expressão por si utilizada com frequência). Mas onde ele era também o primeiro a cumprir e a dar o exemplo na sua banca de trabalho. (Pergunto-me se não deveríamos alargar o polígono para o quadrado, acrescentando mais um lado, que seria o do Hospital de São João, de cuja Comissão Instaladora fez parte, que começou, na verdade, por ser Escolar, e do qual chegou também a ser Director.

Chegou, no entanto, a confidenciar ao Prof. Amândio que “não vislumbrava solução para os inúmeros problemas do HSJ”. Não creio, pois, que seja correcto acrescentar mais um lado ao seu Triângulo Sagrado).

Alguns de nós, tão habituados foram, desde o berço, a mesas fartas, que nunca foram capazes de imaginar o que seria sentir dificuldades ou experimentar entraves por mais pequenos que fossem. A esses, não se lhes podia, nem pode, pedir nada, nem esperar compreensão, nem ajuda, e muito menos que sejam capazes de ensinar aos outros algo de útil...

Mas outros houve, de almas diferentes, como EM, que, adivinhando quais pudessem vir a ser as dificuldades dos seus semelhantes (e os mais próximos dos seus semelhantes eram os seus próprios alunos) tudo fizeram para os ajudar a vencer esses obstáculos.

“Atento aos problemas pessoais… preocupado com a ‘leitura’ que os seus alunos fariam das suas lições e aberto, extraordinariamente aberto, aos desenvolvimentos científicos e pedagógicos” são todas expressões ainda do mesmo Prof. Amândio.

Essa foi a minha própria experiência quando, há 44 anos, fui seu aluno na cadeira de Patologia Geral no meu 3.º ano do Curso. Foi a primeira vez em que, naquelas idades jovens, me senti tratado como uma pessoa e não como um simples número de entre a multidão. São coisas que pelos modos verdadeiros e genuínos com que são feitos ou ditos, marcam profundamente uma pessoa, e nunca mais se esquece, nem ao fim de tantos anos.

É gratificante confirmar, aqui e agora, tudo quanto acabo de dizer e a este propósito transcrever umas palavras suas… mas que eu só descobri hoje, tantos anos depois, e que demonstram que aquela minha impressão naqueles tempos, não constituiu fantasia minha, nem foi puro acaso pontual ou circunstancial. “As doutrinas da Patologia Geral são o enlevo dos estudantes, pela transição que estabelecem entre as cadeiras basilares do curso e a clínica.”

EM (que escreveu, e escolheu, estas palavras em 1951), mostra que sabia muito bem do que falava… e conhecia bem o que os alunos sentiam, no íntimo.

 

Falo em tudo isto porque persiste uma pergunta no meu espírito: o que é ser Professor?

Há com toda a certeza, diferentes modos de ser um bom professor. Mas para responder a essa questão, nada melhor do que recuperar o seu próprio pensamento e as suas próprias palavras. Dizia EM: “escrevi algures que o ensino dos Mestres tem de polarizar-se entre as preocupações e os cuidados de investigação científica, pois ser professor não é só ser sabedor ou competente; é também, e primacialmente ensinar, e ensinar vivendo a preocupação da ciência, sentindo as necessidades dos alunos, promovendo a inquietação intelectual dos discípulos.”

O Prof. Hernâni Monteiro era de outra geração (nascido em 1891, era 14 anos mais velho)… mas foi com ele, e com mais um 3.º elemento, o Dr. Coriolano Ferreira, que, em 1956, foi constituída a Comissão Instaladora e Administrativa do HESJ. Durante mais de 4 anos consecutivos viveram diariamente todas as vicissitudes que um projecto grandioso mas de um edifício de concepção mais que antiquada (dos anos vinte) e, por isso mesmo, desadequado, e, nalguns aspectos, ultrapassado, enfrentando os esperáveis conflitos entre a Faculdade e a Secretaria de Estado da Saúde e Assistência pertencentes a Ministérios diferentes, e as disputas entre os diversos Directores de Serviço a reclamarem cada um para si o melhor quinhão. Deve ter sido um verdadeiro “quebra-cabeças”.

Isto é: quando em períodos particularmente difíceis, era preciso arregaçar as mangas, enfrentar obstáculos e dar a cara… tal como já tinha feito em 1947 com a Ordem dos Médicos, EM dizia: Presente.

E os governantes sabendo que a tarefa iria ser bem espinhosa também não duvidaram da escolha: só poderia ser uma pessoa com muita competência e muita diplomacia, capaz de mais uma vez congregar pessoas e interesses os mais diversos, e, como verdadeiro líder, saber gerir tensões e ultrapassar os numerosos escolhos, como de facto veio a acontecer.

 

Da História da disciplina de grande peso histórico que foi a sua Patologia Geral, da qual foi Prof. Catedrático, deduzem-se evoluções conceptuais e etapas muito interessantes e indissociáveis da História da Química, da Histologia e da Fisiologia, mas também da Anatomia Patológica. Eu diria: de todas as Disciplinas Básicas. (Curiosamente a Microbiologia, pareceu-me ter tido um itinerário à parte)… Essas evoluções tiveram tradução nas próprias designações que a mesma disciplina recebeu ao longo dos tempos, até aos dias de hoje em que, pulverizada que foi sendo ao longo da evolução tecnológica e respectivos aprofundamentos dos conhecimentos biológicos, nem aparece no curriculum da licenciatura.

Essa grandiosa e dispersa fertilidade da sua Disciplina, explica-nos porquê estamos sempre a encontrar, constantemente, o nome de EM, sempre que queremos investigar na história das mais variadas e avançadas etapas da evolução da técnica e das clínicas, médica e cirúrgica, nos dias de hoje, na cidade do Porto.

Como por exemplo:

– As primeiras circulações extra-corporais; a cirurgia cardíaca e os transplantes de órgãos.

– Qualquer dos aspectos da Hemoterapia, na qual a cidade do Porto, talvez muitos não saibam, foi pioneira em todo o País, com a criação da Cruzada do Sangue (embrião do futuro Instituto Nacional do Sangue); como método de Morais para a preparação de plasma heterológico), etc.

– A Histo-Compatibilidade

– A actualmente tão frenética Genética Humana, etc, etc.

É também a história do que chamarei os Homens do Laboratório e do Microscópio através dos quais esses mesmos homens passaram longuíssimos períodos das suas existências, contemplando o mundo da Biologia que é invisível à vista desarmada.

Estes homens tinham, ou acabavam por ter, um perfil psicológico e humano, e até comportamental, muito peculiares. Habituados a monologarem com as células, viviam num mundo de silêncio e mostravam-se às vezes inadequados na convivência social com os restantes mortais, alunos incluídos. Todos nós tivemos e sentimos essa experiência, e alguns pagaram bem caro essas idiossincrasias. E aí, EM, mais uma vez, se revelou uma pessoa de excepção: sendo homem de laboratório e do microscópio era um ser afável, dialogante, nunca alterando o tom de voz, nem mesmo quando estava a incriminar alguém.

 

EM foi desde sempre Homem de Ciência, sempre aberto aos desenvolvimentos científicos.

Em todas as suas propostas sempre estiveram presentes o olhar e o pensamento científico, rigoroso e sempre crítico, de visão larga, inteligência clara e inovadora, corajoso até à audácia. Exigente ao máximo. Sempre impulsionando para cima, imprimindo a sua marca pessoal, própria.

Há pessoas assim: só sabem ser rigorosos, científicos e elevados. Naturalmente, sem qualquer esforço. Foi o seu caso.

Personalidade forte, de certo modo fechada, não expansiva, hermética, fazendo, por isso, com que nascessem e florescessem as teorias mais dispares para explicar o insondável.

A quem, conforme testemunho fidedigno, pelo Natal, no auge do seu poder magnetizante, à porta do seu gabinete se faziam longas filas para o cumprimentarem.

Ao longo de toda a minha permanência no HSJ onde, além de neurologista, fui Assistente de Anatomia Topográfica, durante 15 anos consecutivos, quantas vezes, em conversa com colegas, e motivos nunca faltavam, diga-se, quando num grupo, alguém mencionasse o nome do Prof. EM (parece que ainda estou o ouvir esses comentários) a conversa era interrompida para se dizer “ah! O EM… mas esse era um ser à parte. Um Senhor…”

Para todos os cargos que ocupou, EM foi sempre nomeado por unanimidade dos votantes, o que significa que todos reconheciam que EM possuía as qualidades necessárias para o exercício eficiente e da mais alta qualidade do cargo.

A sua autoridade não era delegada, mas sim uma autoridade imanente, que se impunha, natural e espontaneamente, patente em toda a sua postura: parado ou a andar, calado ou a falar.

Tal como, aliás, transparece dos seus discursos, onde não é possível encontrar palavras a mais, nem a menos.

EM cultivava um estilo sóbrio e austero. Tudo quanto proferia estava certo, exacto, perfeito.

Em todos os seus discursos não há adulação, nem subserviência.

Ao ler os seus escritos, é notável apreciar a combinação harmoniosa que resulta do rigor com uma dignidade serena.

A despeito de nunca ter profissionalmente exercido a clínica médica, no consultório ou enfermaria, não significa que EM não possuísse estrutura e formação humanística, ao mais alto nível, para a exercer. Aliás, todos quantos me deram o seu testemunho, confirmaram, exactamente, a extraordinária sensibilidade clínica de EM.

A história das Instituições, de todas sem excepção, políticas, culturais, religiosas, públicas ou privadas, é, naturalmente, conforme aos homens que aparecerem para a protagonizar.

Na história das Instituições haverá, por essa razão, épocas ou períodos áureos, de muitos, ou poucos actores, mas com qualidade, assim como épocas, ou períodos medíocres, com actores de má qualidade.

É o Factor Humano (FH) o imponderável, mas fascinante, Factor Humano que transforma a Vida de cada um, de todos e das Instituições, numa permanente incógnita, numa permanente aventura… tanto para o Bem como para o Mal… para o Opróbio, nalguns casos, mas também, como foi o caso do Prof. EM, para a Honra, para a Glória e para o Mérito.

Ao meditar, hoje, sobre a pessoa, a figura e a personalidade do Prof. EM, no seu todo, com quem eu próprio contactei, desejando ir ao encontro, e deslindar, aquela referida incógnita que é o factor humano, fascina-me o exercício de tentar subir discretamente a colina, para daí poder olhar, e, mesmo sem esperar pela resposta, questionar:

Quem, ou o Quê, determinou que aqueles meninos (sim, que todos nós começamos por ser meninos, e EM também foi menino) oriundos de famílias tão humildes, nascidos em terras tão agrestes como as de para lá dos Montes Nordestinos do Marão, quando jovens adolescentes viessem, como soi dizer-se, por aí abaixo, para, poucos anos depois, tomarem conta dos destinos da Faculdade de Medicina do Porto (FMP), o que equivale a dizer dos destinos de gerações e gerações de outros tantos jovens a fazerem a mesma caminhada que eles já haviam feito, e que serão os futuros médicos, cirurgiões, obstetras, oftalmologistas, neurologistas e neurocirurgiões, um sem número de especialistas da cidade e do País, alguns aqui presentes.

Que bonita, honrosa e sublime vocação...

Usei, no início, a palavra Providência, e vou usá-la também agora para terminar, porque considero igualmente Providencial que me tenha sido dado contactar com um texto da autoria de EM (com+ de 50 anos) e que se ajusta perfeitamente ao modo como eu gostaria de concluir este meu arrazoado.

Diz assim nem mais nem menos:

“Nesta vida canseirosa e difícil do magistério superior, repleta de responsabilidades, e avara de satisfações, depois da labuta diária do laboratório, muitas vezes tenho procurado alento para enfrentar tarefa mais árdua ou vencer dificuldades mais sérias, na leitura da história da Faculdade, escrita pelos nossos maiores.

Sempre essa leitura me animou, sempre dela colhi ensinamento e de todas as vezes pude verificar, consoladoramente, quanto a memória dos velhos professores é evocada com carinho, profundo respeito e grande admiração. Sempre a sua parcela de esforço-maior ou menor, de mais ou menos brilho-foi compreedida, considerada e agradecida.

Perpassa nessas páginas, ditada pelos mais nobres sentimentos da personalidade humana, a necessidade imperiosa da consagração da memória dos mortos, em evocação de saudade e de respeito, num ambiente solene, como o de hoje, para que o acto constitua também, para além da homenagem, da saudade e da consagração.

Lição preciosa para todos e mais especialmente para os novos, que acalentam o legítimo e louvável propósito de valorizar esta Faculdade, vindo substituir-nos”.

Quantas mensagens belas e profundas estão contidas, e bem a propósito deste momento, em tão pequeno texto. Palavras de um verdadeiro Mestre e Pedagogo.

Dr. Maia Gonçalves

Porto, Ordem dos Médicos, 23 de Outubro de 2007

***

Ernesto de Morais

Médico e Professor Universitário da Faculdade de Medicina do Porto

Em 1928 terminou o curso de medicina e em 1935 doutorou-se em Medicina.

Foi Presidente do Conselho Regional do Porto entre 1947 e 1949, era assim que chamava na altura, e foi durante o seu mandato que se iniciou a primeira formação médica da Ordem dos Médicos com o I, II e III Cursos de Repetição e Actualização de Conhecimentos médicos.

Ao longo de toda a carreira dedicou-se em pleno à Faculdade de Medicina do Porto, da qual foi Director entre 1956 e 1960 e desempenhou numerosos outros cargos directivos de Departamentos Comissões e Instituições sempre relacionadas com a Medicina.

Director do Hospital de S. João entre 1970/74. Foi sempre um grande entusiasta da hemoterapia e foi mesmo o criador de um Instituto Nacional de Sangue.

Foi assim uma vida plena de dedicação á causa médica que viveu o Professor Doutor Ernesto Morais.

fpem@fpem.ptPrémiosApoio MonetárioPrémios Patrocinados